Socoooooro!!!! O defunto se levantou!!!
(Conto cômico de suspense)
Numa cidadezinha pacata, no interior das Minas Gerais, tão logo o dia começava a clarear, o pároco da pequena igrejinha local ligava seu ruidoso megafone instalado no alto da torre. As paredes que sustentavam aquele aparato antigo, eram de pedras encardidas de mofo e estavam bastante obstruídas pelo tempo. As paredes da capelinha pintadas de amarelo fosco e portas de madeira tosca, azul grená.
Padre Juvenil seguia mais de meia hora, todas as manhãs regulando o volume do megafone para então, anunciar a lista dos falecimentos da madrugada. E lá naquele caderno amarelecido, estava escrito o nome do Sr. Eteovaldo, mais conhecido como Zé Cuberta.
O Zé ganhara esse apelido inusitado pela velha mania de sair caminhando pelas ruelas geladas e escuras daquele, digamos, vilarejo, enrolado em um velho cobertor, deixando somente os olhos e o nariz de fora, para se proteger do frio estarrecedor dos períodos de inverno ano pós ano por ali.
O carismático padre, já bastante idoso e quase careca, com seu par de óculos de fundo de garrafa, caído sobre o afilado nariz, punha para tocar uma musiquinha fúnebre, conhecida como “O silêncio”, para provocar aquela nostálgica tristeza.
Depois de deixar a música tocar por alguns minutos e comover a população, ele começava a ler a relação dos nomes dos mortos.
- Nota de falecimento e convite! A família do senhor, Eteovaldo Pereira da Silva, mais conhecido como Zé Cuberta, informa aos parentes e amigos o seu falecimento ocorrido ontem e convida para o seu sepultamento a realizar-se hoje às dez horas no Cemitério local. O velório se realizará à rua Tocantins número 147, bairro Morro Velho.
Voltamos a informar o falecimento do senhor Eteovaldo…
Mas ninguém ainda imaginava o que tinha acontecido por volta das cinco e meia da madrugada, na casa do falecido e que depois do ocorrido, aquele lugar nunca mais seria o mesmo!!!
Dona Geni, acordou por volta das dez e trinta da noite, desesperada, ao sentir que o seu marido estava gelado, intacto, de olhos abertos arregalados, rijo, espichado de barriga para cima na cama bem do seu lado! Ela não se conteve e se pôs a gritar! Tão logo a velha casa de esquina encheu-se de gente! Todos vieram para acudir o homem! Mas fora em vão. Morrera dormindo, aquele pobre cristão!
A recente viúva, após confirmar a morte repentina do marido, pediu a um moleque, filho do verdureiro, para correr até a casa paroquial para o Padre Juvenil ir encomendar a alma do falecido, mas ele não o atendeu. Naquela época e ainda se tratando de uma cidadezinha muito pobre e sem recursos, era de praxe os próprios vizinhos dar banho e arrumar o defunto em casa mesmo. Enquanto a família do enlutado ficava à espera do caixão que demorava chegar, porque vinha de outra cidade a alguns quilômetros.
Sendo assim, o velório transcorria com o morto deitado em uma cama de solteiro, coberto por um lençol branco e arrastada para o centro da sala de visitas. Até amanhecer e algum conhecido pudesse ir até a funerária mais próxima, buscar a urna, o véu e uma coroa de flores com uma modesta faixa preta escrita assim: “Funenária Santa Maria, a sua morte é a nossa alegria”
Não havia evento mais divertido para os homens da região, pois conseguiam um pretexto para sair de casa à noite e passar a madrugada bebendo o defunto!
Era por volta das quatro e meia da madrugada, os parentes já dormiam recostados pelos cantos da casa, três homens, encostados no parapeito de uma pequena janela de madeira tosca, jogavam cartas e bebiam cachaça para espantar o frio que apertava. Quando um pergunta cismado para o outro:
- Você não viu? Parece que o Zé se mexeu!!! - Cê tá variando, cumpade Piriá! O Zé tá morto e geladim, coitado!- Comentou o Compadre Juquinha. - Cê bebeu demais e tá ficando doido, home?!
- Bebi não, cumpade Manél! Eu juro que vi o defunto se mexê debaixo do lençor! - Resmungou o homem, cabreiro, cuspindo um pedaço de fumo mascado.
Um clima tenso se fez. Lá pelas cinco e meia da manhã, já quase com o dia clareando, um gemido confundido com ronco fez com que os três homens se entreolhassem e parassem de gritar truco, para ouvir. Mas não era nada! O defunto continuava lá, estirado sobre a cama! E eles seguira, jogando cartas e bebendo cachaça para esquentar. Inesperadamente, aquela cama fez um barulho estranho! Parecia se ranger com o peso do corpo. Parecia reclamar e avisar que alguém estava se mexendo...
O Zé descobriu-se do lençol, de uma só vez, levantando-se e perguntando:
- Ocêis tão me oiando por causa de que? Onde está a minha cuberta?
Vão me servir uma dose da marvada aí, ou nu vão? Tá um frio excomungado hoje! Tô inté achando que morreu o capeta mais veio do inferno!
Os três homens, sendo um deles perneta, saltaram pela minúscula e única janela daquela sala ao mesmo tempo!
Foi por muito pouco que aquele pobre homem era sepultado vivo! Depois do incidente ocorrido, dizem que ele foi tido como morto e acordou mais duas vezes! Numa delas, chegou a ter cortejo fúnebre, mas, o próprio defunto foi caminhando, enrolado em sua coberta, até que todos perceberam que carregavam um caixão vazio!
Nem mais o Padre acreditava nos prenúncios de falecimento do Zé e não mais aceitou anunciar as suas mortes em seu megafone. Assim, quando morreu enfim, de verdade, ninguém das redondezas foi velá-lo!
Da quarta vez, ele morreu mesmo! Mas Padre Juvenil, muito sem fé, se negou a dar a encomendação da alma do falecido.
Até hoje, ele não se levantou de sua tumba, nem se despertou para assustar ninguém!!! Mas ainda assim, há quem passe em frente o cemitério e diz ver o Zé Cuberta sentado em cima do muro, puxando um trago em seu cigarrinho de palha, baforando fumaça pelas ventas, enrolado em seu velho cobertor sujo de terra, dando risadas e pedindo com o velho gesto dos dedos, uma dose da branquinha!!
Valéria Gurgel.