Valéria Gurgel
"Ficção, Romance, Emoção, Aventura e suspense"
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Textos

Deus lhe pague

Valéria Gurgel

Vinte e oito de setembro de 1871, nascia o primeiro filho da promessa, nas terras do Senhor de Engenho. Para inaugurar a Lei do Ventre Livre. Sim, seu nome tinha raízes da vitória. E quando seu pai o ergueu nos braços em lágrimas bradou; - Nassor, esse será seu nome, meu filho! Porque acredito piamente, quando crescer, será motivo de proteção e orgulho para nosso povo, mudanças nos direitos e respeito para a nossa gente sofrida. Creio que isso se sucederá através de suas mãos, de suas ações. Serás o motivo do despertar para um novo mundo.

Filho de escravo, preto, pobre, analfabeto. Futuro era um mero jargão, palavra ainda inexistente, distante da realidade e sem nenhuma definição.

- Sou forro! Frase da liberdade, ele sempre repetia com orgulho branco e sorriso de largo horizonte. Fazia de tudo um pouco, aquele tudo que sempre restou para sua classe. Era essa a sua forma de alforriar sonhos de cinzas das senzalas de sua ancestralidade.

- Deus lhe pague! Dizia algumas pessoas para ele, desde pequeno. Outros sequer agradeciam, acreditavam ser não mais que sua obrigação, servir aos brancos. Sempre sorrindo, nunca se negava a fazer o melhor que podia. Chegava a pensar que Deus já computasse uma dívida alta com ele lá em cima! Às vezes recebia em troca de trabalho um prato de comida, uma roupa usada, uma alpargata rota de seu chamado patrão. Como se trabalho fosse generosidade, que não se espera pagamento, nem retribuição. Seu pai não chegou a ver se consumar sua profecia de ver um preto ter valor e o filho conseguir mudar a história e despedir-se da dor. Faleceu quando Nassor ainda era um jovenzinho. A mãe resistiu um pouco mais, por ser boa preta cozinheira. Seus irmãos, cada um se perdeu por ai…

Não tinha alta estatura. Os pés cresceram demasiado de tanto andar descalço. Ombros fortes, pele curtida de poeira e sol. As mãos eram avantajadas e calejadas, mostravam a realidade do cenário nacional. As cidades precisavam crescer, a troco de migalhas de pão. E quem carregava pedra jamais por ali voltava para admirar a construção.

Existir bastava, mesmo sem ser visto.

- Deus lhe pague! Deus lhe pague! Deus lhe pague! Aprendeu a repetir o que sempre ouviu. Os chapéus de palha dos poucos pretos velhos que resistiram, adornavam as esquinas e praças com suas necessidades ambulantes em uma mesma realidade da espera de mais uma moeda de um tostão. O que não ofuscava a maldade nem a disseminação da pobreza, do racismo e da discriminação.

Quinze de Novembro de 1899 se proclamou a República no Brasil, enquanto numa dessas obras requintadas, Nassor conseguia enfim seu primeiro emprego. Dependurado em um andaime de toras de madeira amarrado com cipós, trabalhando em mais uma construção, a mais de quinze metros de altura, sob um sol causticante, numa jornada de mais de dezesseis horas de trabalho, estatelou-se lá de cima ao chão.

Mais de um século se passou. E pouca coisa mudou. Nassor, um escravo alforriado, deixou o legado de seu pai e de seus ancestrais, para sempre registrado, inspirando reflexões nas multidões, na tela de Eugênio Proença Sigoud “Acidente de trabalho” e na música “Construção”, de Chico Buarque.

Deus lhe pague!

Texto produzido a partir de um estudo com o Projeto Árvore das Letras de Leandro Bertoldo

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22/06/2023

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Valéria Cristina Gurgel
Enviado por Valéria Cristina Gurgel em 23/06/2023
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