*Ensaio sobre a criança interior
Valéria A Gurgel
Nunca se ouviu falar tanto da nossa criança interior como nos últimos tempos! E isso nos dá uma vaga sensação. É como se ela nunca tivesse existido anteriormente dentro de cada um de nós.
Pensar em tempos em que nem sequer a criança exterior era vista, ouvida ou sentida como tema de sequer preocupação dos adultos, imagina essa criança interna?
E de repente, a criança interior é descoberta, como se ela fosse somente lembrada e percebida agora, a poucos anos, de algumas décadas para cá.
A criança interior ferida é tema de mais da metade de todas as análises e de argumentos atuais dos estudiosos da mente e seus desequilíbrios, tristezas e questões mal resolvidas. Os desertos da alma…
Se fôssemos somar o número de crianças feridas em seus interiores, de todas as nossas gerações passadas, no largo dos séculos, teríamos praticamente a mesma população geral do mundo atual, ou até mais.
Crianças que jamais souberam o significado da palavra infância. Crianças que jamais conheceram o que é brincar. Crianças que jamais receberam afeto, cuidado, amor e proteção. Crianças que mal nasceram, ou sequer nasceram, mas, tiveram suas vidas ceifadas, maculadas e completamente destruídas internamente e ou externamente.
Crianças que parecem ter nascido grandes, pois de tanto ouvirem certas frases, sem entenderem aqueles jargões da obediência tirana familiar, foram obrigadas a encaixotar a inocência e engaiolar os sonhos…
Seriam para as famílias como adultos anões.
“Engole o choro. Cria coragem moleque. Homens não choram. Menina você tem que cuidar de sua irmã mais nova. Brincadeira tem hora. Vá caçar serviço. Vá ajudar sua mãe na cozinha. Você já tem sete anos de idade, já pode assumir o fogão. Vai pra lida com seu padrinho capinar o roçado. Quem não cria calo na mão, não é bom cidadão”. E tantas outras frases imperativas mais…
E se faltasse obediência, umas varadas eram a correção leve.
Hoje o mundo anda bem mudado. As crianças recebem a libertinagem antes de entenderem o que é a liberdade. Vestem-se como adultos, tem seus próprios celulares, inúmeros brinquedos e pouco interesse de brincar.
Muitas são proibidas de assumirem qualquer tipo de responsabilidade. Ainda que mínimas, como arrumar a sua cama, organizar seu quarto, preparar seu próprio lanchinho, organizar a mesa para o jantar, lavar a louça.
Certas inversões do mundo moderno veem contribuindo para uma nova geração; conhecida por “Geração Nutella” de jovens adultos inúteis, alienados, emburrecidos e totalmente dependentes fisicamente e emocionalmente de suas famílias e consequentemente da sociedade.
Muitos graduados e pós-graduados, viajados, intercambiados, poliglotas, internautas, porém, incapazes de fritar sequer um ovo! Não conseguem dar um passo sequer em busca de sua independência financeira ou psicológica. Ancorados dentro das casas de seus pais, completamente desestruturados para assumirem a tal tomada de decisões.
Antes a maturidade era imposta precocemente e de forma imprudente e covarde. Hoje a imaturidade anda envelhecendo sem crescer.
Ou seja, estamos diante das dicotomias da vida.
E a tal criança interior ferida, continua sangrando dentro de cada um de nós, gritado por socorro, implorando por limites, mas ninguém consegue ouvir.
O que nos leva a crer que a dimensão dessa criança ferida, da criança interior que reside em nós, vai além das fronteiras do entendimento. Não é algo tão simples assim de se entender e de se resolver!
Afinal, criança é criança, desde que o mundo é mundo. Ainda que por milênios, séculos e séculos, essa fase tão pura, tão linda e plena de amor inocente e de um poder criativo em expansão, tenha sido tolhida.
Não foi respeitada, nem valorizada, tampouco compreendida.
Antes, criança era vista como um adulto em miniatura, simples assim.
E hoje, a criança é vista como? É tratada como? Cresce livre de proibições e responsabilidades e quando enfim chega na fase adulta e acreditamos que cresceu, vira criança outra vez?
Por esse motivo se arrastam milhões de seres humanos emocionalmente abatidos. Inseguros, revoltados, decepcionados, frustrados, medrosos, acuados, traumatizados e tristes. Não nos restam dúvidas, estamos todos doentes!
Quantos deprimidos, introvertidos, mentes enfermas, acorrentadas num passado que parecem não ter passado. Doses cavalares de dores são curtidas em barris de fel. Tonéis de sofrimento são empilhados nos depósitos das mentes humanas e o estrago é visível, terrível. Basta observar como caminha a humanidade.
E estando feridos, muitos de nós quando adultos, sangramos em cima de quem não nos cortou! Como uma chaga incurável, uma peste perniciosa que segue passando de geração a geração.
Algo lá dentro de nós, continuará gritando por socorro, um grito rouco, mudo, ainda que ninguém possa ou queira ouvir. Até mesmo nós.
Criança não nasce com manual. Isso sempre ouvi como forma perene de se tentar justificar as deficiências dos pais, dos tutores dos menores, ao falhar, ao criar os pequenos.
Eles estão sendo passados de mão em mão, porque ninguém assume o seu verdadeiro papel de pai e de mãe dessa turminha da pesada.
Não há um bom exemplo para as crianças se direcionarem. Aquele espelho a se mirar. E seus progenitores também perderam completamente a referência. Pois o que educa não são meras palavras e conselhos e sim as ações diárias que vão sendo observadas pelas crianças.
Elas já não podem esperar deles, cumprirem esse papel. O que termina sendo responsabilidade das escolas! E o berço foi trocado por carteiras escolares! E quando pensávamos que a evolução tecnológica e a modernidade iria mudar o mundo, assistimos mais um capítulo da história das hierarquias familiares, grotesco e assustador.
Crianças continuam sofrendo seus dissabores e horrores tamanhos… melhor nem citar!
E essa dor aguda da criança interior ferida seguirá nos recônditos da alma. Das lembranças que tentamos esquecer. Quanto mais se tenta esquecer, mais nela pensamos e isso se torna uma armadilha perigosa. É um labirinto capaz de nos deixar perdidos e causar estragos irreparáveis para o resto da vida.
Mas, uma dor também é sinônimo de alerta, de cuidados e requer atenção.
A dor não nos deixa esquecer da ferida, ou do trauma. Mas é por isso que nos permite tratarmos.
A infância é a primeira fase da vida, a mais linda a mais pura, a fase das descobertas, dos questionamentos e das experimentações. É quando ainda temos asas e acreditamos poder voar, e voamos! A brincadeira, a ludicidade e a curiosidade latente, as indagações que nos nutrem a criatividade, é o que nos mantém vivos. Mas também é nesta fase que tudo se instala e começa a se enraizar no subconsciente.
Somente quando a dor deixa de inflamar, ou de doer, se torna uma cicatriz, ou um hematoma. A marca registrada de nosso passado. É preciso detectá-la, aceitar que ela existe, ter compaixão, respeito, para depois pensar em um processo de tentativas de cura.
Todos temos cicatrizes, manchas avermelhadas e até roxas, grandes, pequenas ou quase imperceptíveis. Não há criança que cresce livre de marcas.
É quase impossível aprender a andar de bicicleta sem um tombo. Crescer sem perder o par dos sapatinhos vermelhos pelas estradas da vida…
Sim, podemos guardar a boneca no fundo do baú e o carrinho na estante. Sem deixar se perder a magia do que foi bom, ainda que por breves recreios.
Ao olhar para aquele vestidinho branco rendado, ou para aquelas pequenas calças curtas com suspensório, nos cabides dentro do armário, nos permitem entender que aquelas roupas já não nos cabem mais!
É salutar podermos olhar para as histórias de nossas vidas como se estivéssemos sentados de frente para a tela de cinema assistindo a um filme. Onde somos os protagonistas da história.
As cenas variam entre momentos alegres e tristes. Situações cômicas, emocionantes, dramáticas, de suspense, de terror…
Muitas lutas travadas, onde perder ou ganhar já não tem a mesma conotação de honra ou de desventuras. Entendemos que nem sempre saímos ganhando, mas sempre vitoriosos, por termos enfrentado as batalhas.
A sorte é que tudo na vida passa. O passado já passou. A vida passa, o filme termina e voltamos para casa lembrando de tudo o que vimos e aprendemos. É bem como a música de Erasmo Carlos “se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”.
A vida sempre é pedagógica e nos ensina que às vezes precisamos cair para aprendermos a levantar.
Por pior que seja, é sempre o passado que nos fortalece. É ele quem trás a nossa bagagem, é ele quem nos sinaliza. A experiência de vida é como uma bússola que nos guia para prosseguirmos na caminhada diária!
Às vezes precisamos pegar essa nossa criança no colo, com carinho, respeito e muito amor. Soprar suas feridas, embebê-las de saliva e lhe contar uma história. Trocar o vestido velho da boneca e pentear seus cabelos novamente.
Consertar as rodas do caminhãozinho quebrado.
Ouvir outra vez aquelas histórias dos contos de fadas. A Chapeuzinho Vermelho, mesmo sendo frágil, delicada e pequena, com medo, ou com o risco de ser devorada, precisa enfrentar sozinha o lobo mau, com coragem e valentia, durante a sua travessia pela selva.
A ludicidade infantil que habita em nós é como a divina comédia humana! É brincar de mocinha e bandido o tempo todo e em meio as intempéries do cotidiano, acreditar que seremos salvos. Isso também é a autoconfiança, ou a própria Providência Divina.
Essa percepção pode ser vista como a arte da imaginação que cria e recria, constrói e descontrói valores e desvalores. Como montar um jogo de lego. No fundo você sabe que as peças do jogo de quebra cabeças estão ali, basta você insistir, até encontrar uma maneira correta de montá-lo.
É o lento diário que nos permite expurgar a dor, curando-nos de nós mesmos. Um dia de cada vez. Um processo que dura a vida inteira. Tapa aqui, descobre ali. Escreve, rabisca, rasura, apaga, reescreve, só não arranque as páginas! Um dia, você precisará relê-las.
A verdade é que todos os nossos corações são rasurados, remendados.
Enfrentar nossos fantasmas é também aflorar as nossas fantasias. É explorar a imaginação e possibilitar bordados coloridos, criativos, sobre os remendos grosseiros de nosso sofrido órgão propulsor da vida. É permitir-se mais. É reaprender a sonhar…
É recontar as nossas próprias histórias com nova inspiração. Reescrevê-las, dando a pontuação necessária. Menos interrogações e mais exclamações!
Sim, somos todos heróis e heroínas por termos chegado até aqui. Mesmo com as emoções em frangalhos, respiração ofegante, mãos trêmulas.
E entre farrapos dos sentimentos, atravessamos os nossos desertos. Matamos os nossos dragões ou os deixamos presos na torre mais alta do castelo da bruxa malvada.
Entre vírgulas, necessárias ou não, colocamos umas reticências… se preciso for…
Um dia colocamos um ponto final e viramos enfim a página de nossa história. Mas, ainda não é o fim!
Damos a cada capítulo relido e reescrito um encerramento parcial. Nem sempre feliz, ou totalmente resolvido, mas um novo olhar, com direito a uma nova interpretação.
À medida que a maturidade avança somos mais capazes de entendermos a história e extrairmos reflexões que outrora não conseguíamos. São novos ensinamentos…
O acolhimento e a gratidão pela oportunidade de aprendermos através de nossas próprias experiências, ainda que trágicas, ainda que não estivéssemos preparados para tal, é essencial para encontrarmos a nossa paz.
Vitimizar-se ainda não é recurso adequado para escrevermos uma nova página de nossa história.
Mais importante do que o que nos aconteceu é aprendermos a ser capazes de enxergar o que, e como devemos fazer com aquilo que nos sucedeu.
É o que faz a grande diferença!
Tudo depende estritamente de nós e de nossa interpretação.
Branca de Neve foi obrigada a deixar o Castelo, enfrentar o medo e a solidão na selva, para viver em uma minúscula casinha de sete anões. Comer uma maçã envenenada, para entender o gosto amargo da inveja e das traições mundanas, que muitas vezes, afloram dentro de nossos próprios lares. Mas foi ali, entre pessoas simples, no meio da floresta, que ela encontrou segurança e a sua paz.
A Bela adormecida precisou cair em sono profundo por muitos anos, até ter a lucidez e a maturidade que pudessem lhe fazer conhecer o sentido da vida, da beleza e do amor.
Os três porquinhos ao optarem pela independência, precisaram entender o tamanho da responsabilidade de se viver só. E foi passando por apuros e riscos de morte, que eles enfim, aprenderam o valor da coletividade. Que juntos, poderiam ser mais fortes e mais capazes de ações inteligentes.
As histórias permeiam as nossas vidas desde o primeiro ao último suspiro e nos despertam grandes possibilidades de reflexões…
Reescrevê-las, nos capacita extrairmos pequenos fragmentos que outrora nos passaram desapercebidos. Mas, são elementos essenciais para uma releitura dinâmica, inteligente, madura e aprimorada, capaz de nos fazer decifrar as entrelinhas…
A criança, mesmo ferida, hospeda-se bem tranquila na imaginação do escritor de sua própria história.