Valéria A Gurgel
Bem lá no fundo, bem escondidinho no canto do baú, sempre está guardado um pouco de tudo aquilo que sempre soubemos que deveríamos ter feito, ter sido…
Protelamos, desanimamos, largamos pelo meio do caminho.
E diante do tanto de amontoado do Si que vamos acumulando neste baú, vamos cultivando certas convicções mofadas.
A de sermos o que não somos, a de termos o que não temos, a de saber o que não sabemos. São detritos e resíduos dos elementos dessa vida não pensada, não questionada e não vivida que vão se deteriorando em nós e transformam-se em desiludidas ilusões...
Mas, de que adianta lamentos? Tudo já ficou para trás!
O Si deveria apenas significar o tom suave da melodia que entoa a canção de nossas vidas. Mas, às vezes, pode soar desafinado, em total dissonância com a música mais bela que marcou os nossos melhores momentos. Que embalou nossos sonhos e que desejaríamos seguir ouvindo, para dançarmos ainda que em passos cronometrados de um tango, a nossa realidade atual.
Buscando soluções corriqueiras, melhoramos a tecnologia de nossos equipamentos eletrônicos. A frequência do rádio, o sinal do Wi-Fi, a tela da TV com polegadas cada vez maiores, mas, não adianta. Costuma ainda assim, não conseguirmos ouvir e nem ver o que possa estar ainda faltando soar dentro de nós.
O que não deu para Ser ou Fazer melhor, já foi, já passou. Mas, seguirmos remexendo as tralhas da mente escondida neste baú. Que perda de tempo!
É simplesmente trazer à tona a peça de uma roupagem que não nos cabe mais, ou que as traças já roeram.
O corpo muda, a cabeça muda, a vida muda, as circunstâncias mudam, as necessidades mudam, os nossos interesses mudam e as oportunidades também...
Surgem assim novos intentos, novos tecidos, novos modelos e formas mais inusitadas de criações para se costurar a vida.
Quando limpamos a mente dessas amargas ilusões, o corpo se molda, a cabeça se adapta às novas circunstâncias e tendências em que estamos inseridos. Mudamos o gingado, o rebolado, o charme, o embalo, o paladar e passamos a degustar um sabor até mais adocicado da vida.
A maturidade vai abrindo os nossos corações, e os nossos braços. E bem abertos, vamos acolhendo o tempo, agradecidos pelo que ele pôde nos oferecer. E conscientes, entendemos que sempre houve e há uma razão que impede, que impediu o que não tinha que ser.
E que tudo foi melhor assim. O tempo não perde sua memória e se lembra muito bem de todas as nossas semeaduras se foram boas ou más. E ele entende bem de colheita.
Por isso, já não precisamos guardar o Si em nosso baú. E sim, distribuí-lo em uma paleta de cores, como se fosse uma escala completa de sonoridades agradáveis de dó a Dó e sem penas.
E de Si a Si de nossa sabedoria adquirida, vamos cantando a paz e o amor que alimenta. Ainda que com voz rouca, lábios cansados, braços e pernas fragilizados.
Que sejamos capazes de compor os pequenos e preciosos detalhes de nossa existência, com destreza e clemência. Cantar e espalhar ares de fé e esperança como a pureza de uma eterna criança.
Dançar conforme a música e ser um aprendiz de cada segundo vivido.
Porque a vida em si, vivida só de ilusão, nos desilude.
Como já dizia Pessoa:
"Fôssemos quem deveríamos ser e não haveria em nós a necessidade da ilusão." (Fernando Pessoa).